05 setembro 2005

‘O CINEMA RESISTIU’
04/09/2005

Paulo José revisita os 40 anos que dedicou à tela grande em mostra no CCBB

Saudade é um leão que Paulo José aprendeu a domar com o tempo. Pode deixar a jaula aberta à vontade que ela não sai. Não fosse assim, este gaúcho de Lavras do Sul, de 68 anos, teria uma noite de segunda-feira repleta de lágrimas. Bom, com certeza algumas serão derramadas amanhã, às 20h, quando as primeiras seqüências de “O padre e a moça” (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, longa que lhe tirou a virgindade cinematográfica, tomarem conta da sala de exibição do Centro Cultural Banco do Brasil, mas elas não sairão do rosto de Paulo. No máximo, o que pode calar fundo em seu peito, na sessão de abertura da mostra Paulo José — 40 anos de Cinema, são duas sensações. A primeira é a certeza de que, desde aquele filme, o audiovisual no país resiste bravamente à guerra pela sobrevivência.

— O Brasil faz o melhor cinema brasileiro do mundo. Já quando ele cisma em fazer cinema americano...

Já a segunda, seria um sentimento de gratidão.

— Vendo esses filmes todos é que eu tenho a certeza de que ganhei mais do que tinha pedido. É uma alegria muito grande saber que, apesar das críticas que recebi de pessoas muito próximas a mim e dos riscos que corri, tudo deu certo. Melhor do que se eu tivesse concluído arquitetura e entregue o diploma pra minha mãe. Aliás, ela levou 30 anos para aceitar quando eu larguei a faculdade em Porto Alegre para atuar — diz o ator que, 11 anos antes de posar para as lentes de Joaquim Pedro, debutara nos palcos em montagem de “O muro”, de Jean-Paul Sartre.

Realmente, custou a mudar a visão de dona Maria Del Carmen sobre a trajetória que o filho Paulo, o segundo dos cinco meninos que concebeu, escolheu trilhar.

— Eu já estava com 50 anos na cara e um porrilhão de filmes nas costas quando minha mãe me disse: “Meu filho, por que você não volta para a universidade?” Acho que logo depois ela começou a sentir orgulho, quando viu meu rosto estampado na capa da “Manchete”. Começou até a juntar revistas em que eu aparecia — diz o ator, feliz com a notícia de que, aos 95 anos, dona Carmen irá ao CCBB homenageá-lo.

Até o dia 18, 33 filmes, entre curtas e longas-metragens — mais dois episódios do mítico seriado de TV “Shazam, Xerife & cia” — serão exibidos neste tributo a Paulo, que no dia 13, estará no CCBB para um debate com o público. O pacote inclui produções raras. É o caso de “Como vai, vai bem?” (1968), tragicomédia em oito episódios dirigidos por Alberto Salvá, Paulo Veríssimo e outros, e “A vida provisória” (também de 1968), de Maurício Gomes Leite, trama pioneira em abordar a corrupção em Brasília, rodada sete anos depois da inauguração da capital federal. Outra pedida imperdível é a abrasiva comédia “Cassy Jones, o magnífico sedutor” (1972), versão de Luiz Sérgio Person para o personagem de Lima Barreto.

— Retrospectivas oferecem às pessoas a chance de repensar um filme a partir de uma distância histórica. Nelas, você vê filmes que podem ter envelhecido esteticamente, mas não eticamente — diz ele, citando em especial dois filmes que protagonizou: “Todas as mulheres do mundo” (1966), de Domingos Oliveira, e “Macunaíma” (1969), também de Joaquim Pedro.

Não que eles sejam seus preferidos, já que ele jura não ter eleito um xodó. Mas ambos até hoje geram debate.

— “Macunaíma” não é datado, porque Joaquim o fez sem nenhum maneirismo de época, sem apelar para os efeitos de tecnologia da época, apoiado nos figurinos que Anísio Medeiros costurou. Já “Todas as mulheres do mundo”, por ter um frescor, uma simplicidade — elogia.

Para o ator, há um verdadeiro couvert documental na seleção de longas da década de 60 que integram a mostra.

— Na verdade, todos os filmes dos anos 60 hoje servem como um documentário de época porque tudo o que se vê neles é exatamente o que era. Nos longas do Domingos eu usava minhas roupas. O apartamento do meu personagem não era um cenário fabricado, era o apartamento do próprio Domingos. Nos anos 70, com a idéia do cinema médio, começa a aparecer um enobrecimento do filme. Um personagem que nos anos 60 teria um Fusquinha, nos 70 pilotaria uma Mercedes vermelha — diz Paulo, que há 12 anos vem travando uma dura peleja pessoal.

Seu algoz: o Mal de Parkinson. A doença revelou seus primeiros sintomas em 1993, com uma cena que parece ter sido tirada de uma comédia de humor negro.

— Quando o Parkinson foi diagnosticado e o médico me receitou Prolopa, eu perguntei até quando deveria tomar o remédio. Aí, com um ar meio maquiavélico, ele me respondeu: “Você tem uma doença progressiva, degenerativa e irreversível”, e ficou me olhando com uma cara trágica, como se quisesse tirar minha esperança. Mas aí eu lembrei que a vida que a gente leva também é assim: progressiva, degenerativa e irreversível. Percebi ali que o homem é produzido para ter só 30 anos. Depois disso, as peças começam a sair da garantia.


Depois de passar quase três anos ao lado de uma das mais prestigiadas companhias teatrais do país, o mineiríssimo Grupo Galpão, que dirigiu em montagem de “O inspetor geral”, Paulo prepara com eles uma versão de “Um homem é um homem”, de Bertolt Brecht, agendada para estrear no dia 22 de outubro em Belo Horizonte. Além disso, como produtor, finaliza um documentário sobre a trajetória da trupe dirigido por sua mulher, Kika Lopes, que será lançado em DVD. Apesar de fortalecer seus laços com o Galpão, o projeto deixou o ator com triste impressão sobre a captação de incentivos.

— No Brasil, se você fizer uma produção absolutamente dentro da correção, dizendo exatamente o que gastou e onde gastou, suas contas não são aprovadas. Sua prestação precisa corresponder a um formulário oficial.

Para o ator, falta ao processo maior confiança nos artistas.

— Quando eu capto dinheiro pra fazer um filme, eu quero fazer um filme, não quero comprar um apartamento, nem trocar de carro. Boa parte dos cineastas pensa assim. Mas esse sistema hoje vem cercado de desconfiança, pois o abuso contaminou o uso — lamenta.

Jornal: O GLOBO Autor:
Editoria: Segundo Caderno Tamanho: 1153 palavras
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Caderno: Segundo Caderno