A eterna menina prodígio
Perfil/ Stella Góes
Fernanda Carvalho
Stella da Silva Soares Góes. Assim foi batizada a primogênita do casal Leobino Sá Pereira Soares e Maria José da Silva Soares, que, ainda noivos, firmaram o pacto de formar com as iniciais dos filhos a palavra "solidariedade". O nascimento de Stella, em Ubaitaba, foi seguido de muitos outros. Mais precisamente 11. Para formar a palavra e a extensa família, nasceram Olgahy, Lauro, Ivandilson, Dalva, Armando, Renailde, Ivandina, Euvaldo, Décio, Arlene e Delcione. "Faltou apenas um filho com a letra "E", mas eles conseguiram formar a palavra em castelhano", recorda, bem-humorada. A filha mais velha teve rigorosa formação cultural e religiosa. Albafetizada aos 7 anos, ela lia sobre a vida de Santa Teresinha. O vaidoso pai, o mestre maior, gabava-se ao apresentar aos amigos a inteligência precoce da filha, ávida leitora que encantava declamando poemas desde os 5 anos. "As pessoas me achavam precoce e me tratavam como menina prodígio", conta.
A vida restrita, sustenhtada pelo pai funcionário do Fisco, era ainda mais difícil à medida que chegava cada novo irmão. Morando em Gandu, aos 11 anos, ela estudava numa simplória escola pública da vila, mas sonhava em, um dia, ser aluna do Colégio Nossa Senhora da Soledade, na capital. "Uma vez, fui com meu pai entregar uma encomenda lá. Fiquei fascinada com aquela grandiosidade. Meu pai tratou logo de acabar com meu sonho dizendo que nunca teria condição de pagar para que eu estudasse lá". Teimosa, ela não abriu mão da esperança. As orações de todas as noites mostraram-se válidas. Escolhida para ler um discurso durante uma visita do então governador Landulfo Alves, a pequena Stella impressionou o político com inteligência e desenvoltura que lhe eram peculiar. "A comitiva ficou empolgada e o governador quis me conhecer. Na conversa, falei da minha vontade de estudar na Soledade. No ano seguinte, já era interna do melhor colégio da Bahia e era colega da filha dele", ri até hoje da coincidência.
Tutelada do Estado
O governo do estado financiou não só os estudos da menina prodígio - possibilitou que outros sonhos se tornassem conquistas. Ainda interna, ela foi aprovada num concurso da Previdência. Graduada como professora primária, chegou a lecionar assumindo dupla jornada de trabalho, num tempo em que a maior parte das mulheres se dedicava apenas aos afazeres do lar. O emprego foi mantido até o dia em que o marido, o advogado Dalmo de Araújo Góes, pediu-lhe, como prova de amor, o afastamento da atividade. "Tive a sorte de conviver com um homem machista", brinca, afirmando não se arrepender do pedido de exoneração depois de 18 anos de carreira pública.
"Gostaria de ter convivido com uma pessoa mais liberal, mas não me arrependo porque decidi por amor. Fui muito feliz com ele e meus três filhos. Analisando friamente, faria tudo de novo", comenta, mesmo lembrando a dificuldade financeira que enfrentou sete anos mais tarde quando ficou viúva. "Como juiz, meu marido, assim como todos os magistrados da época, achava que não precisava pagar Previdência. Quando ele morreu, tive que vender carro e ir morar na casa de parentes. Fiquei sem nada".
Sonho antigo
Restou a garra à menina prodígio para vencer o que mais parecia ironia do destino. Na tentativa de superar a dor da perda, ela concentrou os esforços num antigo sonho: ser advogada. Aos 51 anos, ingressou na universidade junto com o filho. Militou na advocacia até 1998, quando ele também faleceu. "Enfrentei na vida uma série de acontecimentos dolorosos, mas, em vez de lastimar, aprendi a manter sempre uma fé inabalável no poder supremo". Hoje, aos 76 anos, ela enfrenta o mal de Parkinson. "Penso que o meu sofrimento da alma foi tamanho que desencadeou a doença". O diagnóstico que, para muitos idosos, poderia ser encarado como setença de morte, vem se transformando em estímulo para a conquista de uma melhor qualidade de vida. "Hoje, sou mais feliz. A consciência das minhas limitações foi o que o Parkinson me troxe de mlhor. Antes, me julgava muito forte, ativa e dinâmica. É bom reconhecer-se frágil em alguns momentos. O corpo sofre as limitações da doença. Fica cansado... O enrijecimento dos músculos causa fadiga, tremores, falta de ar, mas procuro aprender a cada dia a lidar com estes limites", ensina.
Consciente da fragilidade humana, ela não se entrega aos sintomas da doença que apareceram há três anos. Além do acompanhamento médico e fisioterápico, Stella tem uma rotina de fazer inveja a muito jovem. Faz aulas de hidroginástica, dança, canto, inglês. O segredo para tanta disposição? "É a vontade de viver e de ser feliz", responde. A forma como a singela Stella enfrenta o Parkinson deixa admirados os especialistas que a acompanham. A tragetória desde que se descobriu parkinsoniana foi contada no livro Resgatando a vida, lançado, no XIV Congresso Brasileiro de Geriatria e Gerontologia. Nas páginas do livro escrito pelas mãos trêmulas e incansáveis, a autora ensina a fórmula para ser feliz convivendo com tantas limitações. "Venho tentando parar de querer ser forte, sábia e santa para sentir-me fraca e pequinina, mas alegre, rindo e chorando livremente nas horas certas, com a certeza de que vim ao mundo para ser feliz. A cada dia, me sinto melhor e, como o Parkinson se alimenta de tristezas, preocupações, pessimismo, mantenho a esperança de que um dia, quem sabe, ele venha a aceitar oficialmente o ‘~~divórcio definitivo’~~ que venho lhe pedindo".
Fonte: Correio da Bahia